SOBRE O SEMINÁRIO
Em
1998, a XXIV Bienal Internacional de Artes de São Paulo, curada por
Paulo Herkenhoff, elegeu como sua questão central a antropofagia. A
exposição retomou o
“modelo”
antropofágico proposto por Oswald de Andrade em 1928 – quando da
publicação do Manifesto
antropófago
–, explorando aspectos diversos da ideia de “vida como
devoração”. A Bienal enriqueceu, assim, o fundamental debate
internacional acerca das preocupações de alteridade da arte,
tomando a ideia de “devoração do outro”
como ato emblemático de prática relacional e de emancipação
cultural. As premissas oswaldianas do começo do século passado –
“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.
Filosoficamente.” – foram atualizadas e lançadas como uma luz
possível para a produção contemporânea brasileira, atitude que
encontrou também relevantes reverberações no processo de
internacionalização da arte produzida no país.
Com
a ênfase dada, pela exposição, à concepção antropófaga da
arte, a ideia de antropofagia reafirma-se – na esteira de seu
primeiro significativo avivamento, promovido pelo tropicalismo –
como importante horizonte para pensar as questões de alteridade. Com
a virada do século XXI, observa-se que a quantidade de artistas e
teóricos voltados a pensar formas de produção de subjetividade e
alteridade tendo em vista a contribuição antropofágica expande-se
continuamente. A esse movimento somam-se, por exemplo, a valorização
internacional do neoconcretismo brasileiro com suas práticas
relacionais e – não pouco sintomaticamente – a emergência de
um discurso europeu para experiências contemporâneas aparentemente
contíguas a essas (como a “estética relacional” posta por
Nicolas Bourriaud). De modo geral, por entre suas muitas nuances
(também socioeconômicas), tal movimento diz da aposta cultural no
outro,
que passa a ser devorado ou – numa concepção mais apaziguadora, e
reincidente – “abraçado”. Assim, sobretudo no Brasil, a
antropofagia parece adentrar o século XXI com força produtiva
incontestável.
Por
sua vez, no livro Tristes
trópicos
(1955), Claude Lévi-Strauss chamava atenção para forma diversa de
lidar com o outro.
Para o autor, haveria dois tipos de sociedade, as antropofágicas
(“que vêem na absorção de certos indivíduos detentores de
formas temíveis, o único meio de neutralizá-Ias e mesmo de
aproveitá-Ias”) e as que praticariam a antropoemia (do grego
emein,
vomitar) que, “postas diante do mesmo problema, escolheram a
solução inversa, [expulsando] esses seres temíveis para fora do
corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados”.
Havendo sido a antropofagia pesquisada e experimentada no campo da
cultura, a antropoemia restou,
por sua vez, quase intocada enquanto concepção social e cultural.
Dentre
as diversas razões possíveis para esse descompasso, está a crença
– de alguma forma, generalizada – na maior efetividade e no
caráter eminentemente mais democrático da antropofagia. O discurso
da “inclusão social” ou da “responsabilidade pelo outro”
são claros exemplos de uma dimensão cívica dos princípios
antropófagos. A partir dos anos 1980, com a expansão do
multiculturalismo, a antropofagia encontrou, na cultura, um ambiente
propício de expansão e confirmação de suas ideias: “só me
interessa o que não é meu”, já afirmava Oswald de Andrade em seu
Manifesto.
Assim, de modo geral, é possível compreender como a antropofagia
vem se constituindo – sob diversos nomes – como um horizonte de
alteridade para o século que se inicia.
Entretanto,
pode-se observar que o discurso antropofágico do princípio do
século XX, com seu método “inclusivo”, encontra hoje um
ambiente cultural e econômico bastante adverso. Se, à época do
Manifesto
oswaldiano com sua economia pré-industrial, a quebra dos limites
entre o eu
e o outro
indicava uma das mais radicais propostas de transformação da
subjetividade e dos modos da organização social, o atual contexto
socioeconômico é talvez perversamente diverso. Se a proposta
antropofágica promovia uma reviravolta diante de suas contemporâneas
sociedades disciplinares tal qual analisadas por Michel Foucault,
hoje, com a passagem para um modelo de sociedade de controle (Gilles
Deleuze) – marcada pela dispersão e internalização das normas
disciplinares –, a antropofagia talvez tenha sua força aplainada.
Pois, como aponta Suely Rolnik, hoje, também o “capitalismo é
tupinambá”. Defrontados com a homogeneização e onipresença do
capitalismo atual (em seu estágio cultural/cognitivo), vemos o
sistema econômico mundial com suas corporações transnacionais que
ignoram as legislações locais, realizar, ironicamente, a “profecia”
antropofágica de Oswald: o capital é o que parece ser de fato a
“única lei do mundo”. O capitalismo faz-se antropófago. E,
devorador também da antropofagia, tende a suavizar sua radicalidade
e caráter emancipatório.
Nesse
contexto de um sistema econômico (social, cultural, político, etc)
que tudo devora e que a tudo se adapta, perguntamos se não seria o
momento de rever a ideia de antropoemia como
uma prática de resistência necessária face ao capitalismo
antropófago. Não poderia a antropoemia estabelecer uma inventiva e
produtiva relação com a ideia de uma cultura antropofágica? Diante
da devoração generalizada a que somos constantemente submetidos –
e do qual a institucionalização da arte é um sintoma –, qual o
lugar do vômito,
da excreção, do não?
Face, por exemplo, à crise da democracia, a antropoemia não
poderia, em sua relação com a antropofagia, nos oferecer outros
horizontes para as políticas
de alteridade – entre indivíduos, grupos culturais ou nações –,
buscando escapar à versão não conflituosa da antropofagia, hoje
cada vez mais difundida? Como se manifesta a antropoemia hoje?
Como pensar a antropofagia a partir da antropoemia?
Dessa
forma, o
Seminário
vômito
e não:
práticas antropoêmicas na arte e na cultura
é
um convite à positivação criativa e livre da versão pejorativa da
antropoemia – tal qual colocada por Lévi-Strauss em Tristes
trópicos –, trazendo-a
ao seio do pensamento antropófago. Pois, enquanto o percurso
intelectual da antropofagia tende a colocá-la como totem,
por sua vez, a antropoemia tem restado como tabu.
Contudo, havendo a “transformação do tabu em totem” sido
proposta por Oswald de Andrade como procedimento vertebral da
antropofagia, é como alimento para esse processo histórico e
dialético de transformação que, neste seminário, retoma-se
criativamente a ideia de antropoemia. O
que aqui se intenciona é devorar
o tabu em totem:
devorar a antropoemia, vomitar a antropofagia, ininterrupta e
desordenadamente. A partir e para além da arte, este seminário é
um convite a fazê-lo inventivamente.
A
antropoemia – o vômito – interrompe a digestão e a evacuação:
reverte a dialética ao não permitir que se faça a síntese.
Impedido de virar bosta, todo vômito se faz comestível: na
contramão da síntese, vomitar é a possibilidade de comer
novamente, e outra vez mais. “Contínua transformação do tabu em
totem”. Todo vômito “já éramos” alimento – como indicava
Oswald no Manifesto
de 1928. O vômito pode ser, portanto, elemento terciário no
interior da lógica binária: é ao mesmo tempo alimento e dejeto,
inclusão e exclusão. Ambivalência. O vômito é o pulsante
processo dialético e histórico, instável e informe. Força que não
estabiliza.
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