A antropoemia – o vômito – interrompe a digestão e a evacuação: reverte a dialética ao não permitir que se faça a síntese. Impedido de virar bosta, todo vômito se faz comestível: na contramão da síntese, vomitar é a possibilidade de comer novamente, e outra vez mais. “Contínua transformação do tabu em totem”. Todo vômito “já éramos” alimento – como indicava Oswald no Manifestode 1928. O vômito pode ser, portanto, elemento terciário no interior da lógica binária: é ao mesmo tempo alimento e dejeto, inclusão e exclusão. Ambivalência. O vômito é o pulsante processo dialético e histórico, instável e informe. Força que não estabiliza.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

SOBRE O SEMINÁRIO

Em 1998, a XXIV Bienal Internacional de Artes de São Paulo, curada por Paulo Herkenhoff, elegeu como sua questão central a antropofagia. A exposição retomou o “modelo” antropofágico proposto por Oswald de Andrade em 1928 – quando da publicação do Manifesto antropófago –, explorando aspectos diversos da ideia de “vida como devoração”. A Bienal enriqueceu, assim, o fundamental debate internacional acerca das preocupações de alteridade da arte, tomando a ideia de “devoração do outro” como ato emblemático de prática relacional e de emancipação cultural. As premissas oswaldianas do começo do século passado – “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.” – foram atualizadas e lançadas como uma luz possível para a produção contemporânea brasileira, atitude que encontrou também relevantes reverberações no processo de internacionalização da arte produzida no país.
Com a ênfase dada, pela exposição, à concepção antropófaga da arte, a ideia de antropofagia reafirma-se – na esteira de seu primeiro significativo avivamento, promovido pelo tropicalismo – como importante horizonte para pensar as questões de alteridade. Com a virada do século XXI, observa-se que a quantidade de artistas e teóricos voltados a pensar formas de produção de subjetividade e alteridade tendo em vista a contribuição antropofágica expande-se continuamente. A esse movimento somam-se, por exemplo, a valorização internacional do neoconcretismo brasileiro com suas práticas relacionais e – não pouco sintomaticamente – a emergência de um discurso europeu para experiências contemporâneas aparentemente contíguas a essas (como a “estética relacional” posta por Nicolas Bourriaud). De modo geral, por entre suas muitas nuances (também socioeconômicas), tal movimento diz da aposta cultural no outro, que passa a ser devorado ou – numa concepção mais apaziguadora, e reincidente – “abraçado”. Assim, sobretudo no Brasil, a antropofagia parece adentrar o século XXI com força produtiva incontestável.
Por sua vez, no livro Tristes trópicos (1955), Claude Lévi-Strauss chamava atenção para forma diversa de lidar com o outro. Para o autor, haveria dois tipos de sociedade, as antropofágicas (“que vêem na absorção de certos indivíduos detentores de formas temíveis, o único meio de neutralizá-Ias e mesmo de aproveitá-Ias”) e as que praticariam a antropoemia (do grego emein, vomitar) que, “postas diante do mesmo problema, escolheram a solução inversa, [expulsando] esses seres temíveis para fora do corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados”. Havendo sido a antropofagia pesquisada e experimentada no campo da cultura, a antropoemia restou, por sua vez, quase intocada enquanto concepção social e cultural.
Dentre as diversas razões possíveis para esse descompasso, está a crença – de alguma forma, generalizada – na maior efetividade e no caráter eminentemente mais democrático da antropofagia. O discurso da “inclusão social” ou da “responsabilidade pelo outro” são claros exemplos de uma dimensão cívica dos princípios antropófagos. A partir dos anos 1980, com a expansão do multiculturalismo, a antropofagia encontrou, na cultura, um ambiente propício de expansão e confirmação de suas ideias: “só me interessa o que não é meu”, já afirmava Oswald de Andrade em seu Manifesto. Assim, de modo geral, é possível compreender como a antropofagia vem se constituindo – sob diversos nomes – como um horizonte de alteridade para o século que se inicia.
Entretanto, pode-se observar que o discurso antropofágico do princípio do século XX, com seu método “inclusivo”, encontra hoje um ambiente cultural e econômico bastante adverso. Se, à época do Manifesto oswaldiano com sua economia pré-industrial, a quebra dos limites entre o eu e o outro indicava uma das mais radicais propostas de transformação da subjetividade e dos modos da organização social, o atual contexto socioeconômico é talvez perversamente diverso. Se a proposta antropofágica promovia uma reviravolta diante de suas contemporâneas sociedades disciplinares tal qual analisadas por Michel Foucault, hoje, com a passagem para um modelo de sociedade de controle (Gilles Deleuze) – marcada pela dispersão e internalização das normas disciplinares –, a antropofagia talvez tenha sua força aplainada. Pois, como aponta Suely Rolnik, hoje, também o “capitalismo é tupinambá”. Defrontados com a homogeneização e onipresença do capitalismo atual (em seu estágio cultural/cognitivo), vemos o sistema econômico mundial com suas corporações transnacionais que ignoram as legislações locais, realizar, ironicamente, a “profecia” antropofágica de Oswald: o capital é o que parece ser de fato a “única lei do mundo”. O capitalismo faz-se antropófago. E, devorador também da antropofagia, tende a suavizar sua radicalidade e caráter emancipatório.
Nesse contexto de um sistema econômico (social, cultural, político, etc) que tudo devora e que a tudo se adapta, perguntamos se não seria o momento de rever a ideia de antropoemia como uma prática de resistência necessária face ao capitalismo antropófago. Não poderia a antropoemia estabelecer uma inventiva e produtiva relação com a ideia de uma cultura antropofágica? Diante da devoração generalizada a que somos constantemente submetidos – e do qual a institucionalização da arte é um sintoma –, qual o lugar do vômito, da excreção, do não? Face, por exemplo, à crise da democracia, a antropoemia não poderia, em sua relação com a antropofagia, nos oferecer outros horizontes para as políticas de alteridade – entre indivíduos, grupos culturais ou nações –, buscando escapar à versão não conflituosa da antropofagia, hoje cada vez mais difundida? Como se manifesta a antropoemia hoje? Como pensar a antropofagia a partir da antropoemia?
Dessa forma, o Seminário vômito e não: práticas antropoêmicas na arte e na cultura é um convite à positivação criativa e livre da versão pejorativa da antropoemia – tal qual colocada por Lévi-Strauss em Tristes trópicos –, trazendo-a ao seio do pensamento antropófago. Pois, enquanto o percurso intelectual da antropofagia tende a colocá-la como totem, por sua vez, a antropoemia tem restado como tabu. Contudo, havendo a “transformação do tabu em totem” sido proposta por Oswald de Andrade como procedimento vertebral da antropofagia, é como alimento para esse processo histórico e dialético de transformação que, neste seminário, retoma-se criativamente a ideia de antropoemia. O que aqui se intenciona é devorar o tabu em totem: devorar a antropoemia, vomitar a antropofagia, ininterrupta e desordenadamente. A partir e para além da arte, este seminário é um convite a fazê-lo inventivamente.
A antropoemia – o vômito – interrompe a digestão e a evacuação: reverte a dialética ao não permitir que se faça a síntese. Impedido de virar bosta, todo vômito se faz comestível: na contramão da síntese, vomitar é a possibilidade de comer novamente, e outra vez mais. “Contínua transformação do tabu em totem”. Todo vômito “já éramos” alimento – como indicava Oswald no Manifesto de 1928. O vômito pode ser, portanto, elemento terciário no interior da lógica binária: é ao mesmo tempo alimento e dejeto, inclusão e exclusão. Ambivalência. O vômito é o pulsante processo dialético e histórico, instável e informe. Força que não estabiliza.

Nenhum comentário:

Postar um comentário